sábado, 1 de janeiro de 2011

O sono do rio e o ano novo



 

 

A LIÇÃO DO SONO DO RIO 

Meia-noite o rio dorme
Mais ou menos dois minutos

Pra nós é um tempo curto

Pra Uiara é um tempo enorme

(Uiara. Paulo César Pinheiro)


Me perguntaram hoje sobre minhas projeções e desejos para o ano que se aproxima. Não sou muito de projetar ou desejar as coisas, mas ando precisado de ouvir e contar mais histórias sobre o Brasil e nossa gente. Careço cada vez mais  de  estudar, ouvir, cantar e silenciar sobre o nosso povo, e apenas sobre ele. Me ocorre dizer também que, por tudo isso, quero aprender e exercitar em 2011 uma lição do Velho Chico, o rio nosso.


Contam os canoeiros do São Francisco que o rio, na hora grande da meia-noite, dorme durante dois minutos. É a hora em que a vida se assossega e o mundo se recolhe: as cachoeiras interrompem a queda, a correnteza cessa e até Paulo Afonso silencia. Os ribeirinhos aprendem desde cedo que não se deve acordar o rio durante o seu sono.

Nos dois minutos de sono do rio, os peixes se aquietam, as cobras perdem a peçonha e a mãe d´água se levanta para pentear os cabelos nas canoas. Os que morreram afogados saem do fundo das águas em direção às estrelas. Esse sono do rio não deve ser, de maneira alguma, interrompido, sob pena de endoidecer quem despertou as águas.

Ando matutando - como sujeito alumbrado que sou pelas brasilidades caboclas - a respeito do que os ribeirinhos ensinam sobre o descanso do rio e concluo que vez por outra é mesmo necessário adormecer no tempo e sossegar como as águas.

O ritmo da nossa sociedade - marcado pelo fascínio das máquinas, o ruído dos motores, a precisão dos relógios, a velocidade das informações simultâneas e a procura feérica da felicidade - acelera a vida e nos desacostuma dos homens. Tem lá seus benefícios (não sou, definitivamente, um saudosista) mas anda perto das desumanidades 

Por isso é preciso, vez por outra, adormecer feito o rio ao abandono das horas, se aluar em águas paradas e abandonar os desatinos da felicidade ( o brinquedo que não tem) .

O sono do São Francisco, o desapego dos peixes e o silêncio das cachoeiras me fazem crer que  a expectativa da felicidade, da forma como a sociedade de consumo lida com ela, é das coisas mais brutais que existem. O sujeito acha que tem que ser bem sucedido no amor, no trabalho e nas relações pessoais. Precisa viajar pelo menos duas vezes por ano, trocar de carro de quando em vez, não pode ficar doente e não pode conceber a morte. Acontece que não é assim que o rio segue seu curso e descansa no fim do dia.

Como ninguém é capaz de atingir essa tal felicidade de shopping center que é vendida por aí, formamos aos montes um bando de depressivos, uns sujeitos infantilizados que não conseguem lidar com o fracasso e se entopem de remédios para dormir, acordar, trabalhar, trepar... Parece paradoxal, mas é isso mesmo: a expectativa da felicidade é uma fonte poderosa de angústias e depressões.
 
Que os caboclos do Brasil, portanto, me iluminem no ano que virá para que eu respeite o sono do rio, o repouso dos peixes e o voo dos afogados. Que o país imaginado, e em mim recolhido, me ensine a viver na síncopa, no drible, na dobra do tambor, na oração dos romeiros, na dança lenta de Oxalufã, nas delicadezas do Reisado, nas rodas de cirandas, nas oferendas do Divino, na suavidade dos sons bonitos e na imponência calada das gameleiras.

Esse nosso mundo, de tão virtual, anda meio desvirtuado - e eu quero cada vez mais ter o tempo de adormecer o rio, aquietar os peixes, sossegar as cachoeiras, louvar meus ancestrais e me encantar com a Uiara a envaidecer canoas.